sexta-feira, 8 de março de 2019

Tristes almas não dão lugar a Carnavais


Carnaval que é Carnaval, além de música, é alegria e folia genuína. Há corsos, e corsos, desfiles e desfiles, fatos e fatiotas, mas no extravasar da alegria é que está a alma deste negócio que é a vida. É certo que o simbolismo da tradição está muito desvirtuado, mas também é certo que a sociedade, para seu bem, não se pode cristalizar. Aquilo que, desde a Grécia Antiga, tempo a que remonta esta tradição, não se terá alterado é o facto de podermos usufruir de uns dias de uma alegre liberdade.
É Carnaval, ninguém leva a mal, remete-nos para essa alegre liberdade. Sou amante acérrima da liberdade, mas daquilo que chamo de verdadeira liberdade, ou seja, da liberdade responsável. Não é porque me sinto livre que posso prejudicar gratuitamente a vida do próximo, claro está. Ao mesmo tempo, essa liberdade obriga-me a estar mais informada e a ser mais prudente no uso da mesma. 
Imagine-se 365 dias de Carnaval em Portugal (embora não se ande longe). Vou então contar-vos uma história.

Era uma vez, há muitos, muitos anos… bem, não há tantos como isso, na cidade de Lisboa, uma jovem gaiata, começou a achar que brincar ao Carnaval até que era muito divertido. Apanhou-lhe o gosto.
Desde a escola secundária, passando pela faculdade, pela docência e pelo mestrado, sempre fez muita questão de se aprimorar ao máximo nessa festa sagrada, clímax da mascarada. Por voltas que a vida dá, e porque a sua grande companheira de saídas carnavalescas, regressou aos EUA, sua terra natal, não tornou a celebrá-lo da mesma forma.
Viveu muitas experiências. Levava à risca a regra dos três dias. Para três dias, três máscaras. Sendo que na véspera do Entrudo se encarnava a personagem principal.
No seu perfecionismo, nunca deixava a elaboração das máscaras por mãos alheias. Pensava  tudo ao mais ínfimo pormenor. E se era para ser fiel à  ideia, assim seria. A criada fina teve direito a um vestido vermelho de seda natural com uma grande racha, a Marnele Furacão rasgou a bela da meia de rede, tinha as ligas à mostra e exibia um cabelão azul elétrico. A cigana apregoava mercadoria e gritava amargurada à passagem da autoridade policial, nas ruas do Bairro Alto. O inesquecível casalinho de emigrantes, a Celestina aperaltada com os seus vermelhos e dourados, o Onofre tilintando os seus ouros ganhos na árdua labuta da distante França, ambos dizendo vien ici aos amigos que passavam. A clássica Bruxa, uma Eva, num fato feito à medida, da cor da pele, com as parras nos sítis certos, sem peruca, porque o cabelo era muito longo e de um dos braços pendia uma serpente, culminando na maçã do pecado. Vivenciou-se porteira dos bairros de Lisboa e arredores, bata, luvas de borracha, fita e mola na cabeça. Numa noite de pouca imaginação, duas agulhas de tricô e um longo vestido chinês de um exótico cor-de-rosa, trazido de uma viagem a Hong Kong, desenrascaram uma das noites secundárias. Uma morta-viva, cuja maquilhagem ao acentuar a tez de natureza pálida e o olhos verdes, me assemelhavam à pequena Reagan, imortalizada no Exorcista, até uma minhota estridente e exuberante e tantas outras personagens que me diverti a elaborar e encarnar, que seria exaustivo enumera-las a todas.
Carnaval era também amena alegria entre amigos. O grupo, em grande escala reunia-se, por norma semanalmente, no mínimo, mas no Carnaval essa reunião tinha um sabor diferente. Não era a Maria, A Rita, O Manel, mas o Caricas Metal, o Mário Corleoni…
Como a casa de Lisboa é muito grande, durante uns anos algum pessoal reunia-se lá para se mascarar e maquilhar. Como o meu Pai fez algumas incursões por África, na projeção de grandes obras de engenharia, trouxe muitas vestes locais. A minha Mãe retirava essas roupas do baú que ganhavam vida e, por uma noite se transformaram em Cleópatras, Quéfrôs, e tantas outras personagens. Jamais esquecerei um grande amigo, que veio a falecer mais tarde, de origem guineense, filho de embaixador e porte elegante, que no seu corpo escultural, exibiu um antigo vestido de gala da minha Mãe, dos seus tempos de juventude, com uma linda camisa vermelha de seda natural e uma longa peruca loira. 
Foram anos divertidos, hoje já não é assim, apesar de ser divertido de outra forma. Não voltava atrás no tempo, mesmo se pudesse. Mas as memórias destas festas e destas imagens, essas, não me as podem tirar.   

No plano ficaram muitas máscaras por concretizar, pois seriam precisos muitos carnavais para colocar em prática tantas personagens que eu teria gostado de encarnar. A verdade é que a essência desses carnavais residia apenas e tão só na possibilidade das pessoas se poderem divertir sem o olhar acusador de alguém. Porque há sempre um olhar acusador.

Apesar destes momentos divertidos que estas festas me proporcionaram, houve sempre um denominador comum nelas todas - os parvalhões do costume. Nesta altura do ano há quem troque a diversão e felicidade genuína pela água, pela farinha, pelos ovos, pela lama, etc.. Depois de atirarem estas coisas às pessoas, í sim, ficam muito contentes e isso faz com que ganhem o Carnaval. Eu nunca tive o azar de ser atingida por estes imbecis com cérebro de ervilha. Os infelizes não gostam de ver pessoas felizes, é o costume. Já vi este filme vezes demais...

Hoje, por cá, o Carnaval já não é celebrado como era. Tanto que vivo numa zona do País que não parece ter grande euforia carnavalesca. Os meus disfarces não têm passado de pequenos apontamentos. Logo no primeiro ano em que me mudei para cá, acompanhei o desfile dos meninos da escola, onde o meu Filho também ia, eu levava uma bandelete em forma de orelhas de ovelha. Não tardou a ouvir que estava a fazer uma figura triste. 

Almas tristes em belas, mas tristes terras, só dão lugar a Carnavais tristes. Foi isso que aqui me trouxe, hoje. Este ano, decidimos ir a um Concelho próximo, pois publicitava-se uma grande festa de Carnaval. Um enorme desfile. Muita música, barraquinhas e animação para as crianças. Chegámos, abeirámos-nos à estrada a ver o desfile a passar. Nas mãos, tínhamos confetis e serpentinas. Os carros alegóricos sussurravam músicas, as pessoas que desfilavam pareciam enfadadas, rapazes e raparigas dos bombos tocavam com uma mão e com a outra, controlavam os smart-phones. Atirámos serpentinas e confetis a medo, muito a medo… acabámos por tornar a guardar o "material" no saco. Apesar dos apesares, e como não podia dar a viagem por perdida, e como não resisto aos ritmos, ainda me abanei um bocadinho.
A meio do desfile o miúdo disse: Isto não tem nada de divertido!
Não me admira nada, um dia normal em minha casa consegue ser mais divertido do que aquele desfile de carnaval.

Que gente estranha esta que nem no Carnaval tem alegria na alma. Este último ano ensinou-me muito acerca destas gentes de um território há muito votado ao abandono, tanto pelos filhos da terra, como pelos responsáveis pelo País. Parecem cultivar um hermetismo, em que nem sequer o Fado de Lisboa, da Saudade e da Tristeza, parece conseguir entrar. Nada se pode oferecer para além do turismo, que não é fruto da construção, nem do trabalho, mas do que simplesmente já cá está. A hospitalidade é como o queijo e as batatas, vende-se. A alegria, bondade e gentileza não são genuínas.

Não vislumbro nestes carnavais nada para além de anúncios na rádio e ocupação de tempos livres. Como pode haver alegria em terras onde as pessoas correm atrás do cheiro dos euros, para a Capital ou para a França, mas correm à pedrada potenciais "ladrões" de euros? Onde pode haver alegria em terras que vão cada vez mais perdendo a sua identidade, não porque ela não exista, mas porque há cada vez menos pessoas capazes de a recuperar.

O Carnaval, aqui, resume-se, à máscara, Carnaval! Pois que, aqui, Carnaval que é Carnaval não entra!