domingo, 20 de novembro de 2016

O mundo dos meus pensamentos

 


A minha vida aqui é mais tranquila. Estou em paz com o mundo, fiz as pazes com o passado, aprendi a viver com a minha doença e, acima de tudo, encontrei a minha felicidade! Aqui, em terras campestres sou genuinamente feliz. Embora não alheia às dores que me assolam de quando em vez, pois todos nós carregamos connosco a saudade de alguém e as nossas dores próprias. Quem me conhece sabe que vivi um inferno em terra muitos anos, mas sabe também que nunca deixei de me divertir, de lutar e de continua apesar das milhares de quedas que fui dando! Um dia, quando eu estiver preparada para versar sobre isso, saberão do que falo... 
Mas hoje, tudo isso é passado, não carrego mágoas. Mesmo em relação àqueles que jamais voltarei a abraçar sinto uma imensa paz em relação á sua ausência física para sempre da minha vida, embora a saudade permaneça, claro está!
Hoje a vida é singela, não revela surpresas, tem os desafios da maternidade, da doença e os dias correm rotineiros, mas ao meu contento. E eu gosto dela assim. Como não tenho por aqui escondido, a minha mente é demasiado inquieta para grandes andanças. Gosto dos dias planeados ao detalhe, tenho prazer em tratar da família, não me sinto minimizada por não ter uma carreira, apesar de ter estudado, adoro o momento do dia em que escolho a roupa para o dia seguinte, enquanto pergunto ao meu Filho se ele acha que a mãe vai bonita com este lenço ou aquele colar...
Não tenho serviço televisivo, não oiço notícias, moro numa quinta relativamente isolada e passo a esmagadora maioria dos meus dias comigo mesma. Desfruto da companhia do meu Marido e do meu Filho e pouco mais, no entanto, nunca me senti tão acompanhada como agora. Ao invés já vivi na mais retunda solidão rodeada de multidões. Longe vão os tempos em que me misturava com dezenas de pessoas, frequentava inúmeras festas, participava num sem número de atividades e, no fundo, estava acompanhada da minha própria solidão. Sei que poucas coisas se igualam a este estar-se só no meio das gentes.
Mais do que em qualquer outra altura da minha vida, perco-me a escutar o silêncio da minha alma. Como adoro o meu silêncio e como me alegro na companhia de mim mesma. Não sendo, sou solitária. Disseram-me em tempos que uma pessoa para viver a vida como eu a levo, é preciso ter o feitio certo. Bem sei que nem todos aguentariam levar uma vida tão isolada. Até consigo surpreender as pessoas aqui da aldeia!
A verdade é que, nem me sinto só, nem estou só! Tenho família e amigos para quem a distância pouco ou nada representa. Para as verdadeiras amizades não existem quilómetros pelo meio. Para os laços de sangue que perduram para além da mera genética, também não.
Porque solitária não quer dizer mergulhada na solidão, amo a vida que levo. Hoje, não poderia ser mais feliz.
Tenho problemas comezinhos, naturalmente. O dinheiro não abunda e isso, por vezes, exaspera-me, mas não me ocupa os pensamentos mais do que o estritamente necessário. Tenho um familiar às portas da morte, sei que em breve ficarei sem mais uma pessoa. Mas ainda assim sei que a vida não se vai cristalizar. O mundo, cruelmente e como sempre, não vai parar para escutar as minhas dores, mas eu também não vou parar para as carpir.
Hoje, acabei de fazer a árvore de Natal com o R. e o nosso Filho. Também enfeitámos a casa e acendemos a lareira. Amanhã, o miúdo estará na escola, o R. na sua vida e eu ficarei presa às minhas atividades quotidianas na companhia de mim mesma. Se por ventura algum triste pensamento me vier à ideia, não me vou esquecer de olhar para a árvore que fizemos em conjunto e de me congratular por cada segundo da vida que levo...

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O balanço de mais uma experiência....

Na semana passada fui à TV falar de maternidade e doença mental, na qualidade de mãe bipolar. Foi uma experiência enriquecedora e muito positiva. Na verdade, não pensei que pudesse ter sido tão importante como foi (dentro da sua relativíssima importância, claro está!).
Ao longo destes últimos dias tenho ouvido um feedback bastante positivo no que concerne à questão da importância de se debaterem publicamente problemas relacionados com a saúde mental, ainda tão estigmatizada em Portugal.

Confesso que estava bastante nervosa, não por falar do que falei, mas por sentir aquelas caras, câmaras e luzes voltadas para mim. Mas enfim, lá respirei fundo, fingi que ia dar uma aula, e cá vai disto! Falar de doença mental, como já se percebeu, não é tabu para mim. Apesar de ter sofrido muito ao longo da vida com comentários desagradáveis, atitudes pouco nobres e abusos psicológicos, por padecer de tal mal, não me coibo de apregoar aos ventos que tenho uma doença mental. Não que ande para aí a falar por falar, claro está. Bem pelo contrário, para ser muito honesta comigo mesma, o meu caso interessa-me muito pouco. Tomo a minha medicação, tenho um grande apoio de familiares e amigos, logo o meu caso está remediado. Preocupam-me essencialmente as pessoas que não se tratam por vergonha ou preconceito. O meu interesse na divulgação deste problema passa essencialmente por aí.

Conheço muitos casos tristes de pessoas que vivem uma vida infernal e doentia por temerem o tratamento. O grande mal é que a medicação psiquiátrica tem muito má fama. Coisa que de facto eu não entendo! Postas as coisas desta maneira será que faz algum sentido eu dizer - o meu medicamento diário para a tensão arterial é imprescindível, mas a minha medicação psiquiátrica faz-me mal!? Não, claro que não!

Voltando à experiência sobre a qual me apraz versar, a minha ida à TV, uma das coisas que mais me tem dado que pensar tem sido o facto de as pessoas que me abordam acerca da minha entrevista, me dizerem essencialmente que eu fui muito corajosa por me expor. Pois eu não me sinto minimamente corajosa! De facto, ponho as coisas de outra maneira. Eu simplesmente aceitei falar abertamente sobre um assunto tabu! Em vez de corajosa, eu diria, aberta e despreconceituosa. Será que alguém concorda comigo?

Sim, de certa forma, precisei de alguma coragem, na medida em que tive de fazer referência a episódios muito íntimos da minha vida para que as pessoas pudessem compreender a dimensão destes problemas. Mas acima de tudo acho que aceitei discutir abertamente o tema da doença mental.

Quem me conhece sabe que sou uma pessoa mais do tipo solitária. Talvez por causa da doença, não sei, tenho necessidade de me refugiar no barulho do meu silêncio. No entanto, longe do contexto laboral, que há muito abandonei, não tenciono deixar de dar o meu contributo ao mundo. Se, por ventura, consegui mudar uma só cabeça em relação à questão da saúde mental e do estigma que ela arrasta consigo, já encosto a minha cabeça na almofada satisfeita!





quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Eu, Mãe Bipolar: Amar e Sofrer




É quase Natal, Natal de 2016. 2017 aproxima-se a grande velocidade. Está-se quase a completar o primeiro quartel do século XXI. Falar de século XXI é falar de inovação, globalização, tecnologia, multiculturalismo e tolerância. Fala-se, fala-se muito de muitas coisas. Ao invés, silenciam-se outras, por dificuldade de abordagem, vergonha ou medo. Há até mesmo aquelas palavras que assim que são proferidas, são logo silenciadas: não contes; não fales; não digas; o que é que as pessoas vão pensar!


O diálogo sobre a doença mental é, maioritariamente, travado à porta fechada. Eu própria, quantas vezes me retraio de afirmar-me doente mental?! Muitas. Por vergonha? Às vezes e também porque, aos olhos dos outros isso não é uma doença. Só a minha hipertensão arterial é que é um problema de saúde. Acham a Bipolar outra coisa, talvez tenham pouca vontade de trabalhar, sejam fracos ou instáveis, etc..


Não é nada disto! Sou doente! Sou portadora de doença Bipolar tipo II, que é uma perturbação biológica que se manifesta em grandes oscilações cíclicas de humor. Sou uma pessoa cuja saúde, ou falta dela, mexe com a minha vida. Não tenho a sorte de ter saúde mental. Revolta-me olhar à minha volta e constatar a desvalorização de que as doenças mentais são alvo. A conotação é válida para tudo, segundo o que o povo diz, doentes, médicos, medicamentos, tudo é nefasto: os doentes ou são tolinhos, ou preguiçosos, os médicos chupistas e a medicação venenosa!

Esta é a realidade do estigma em torno da doença mental. Ela, para além de ser um assunto tabu, é relegada para um plano inferior, como se houvesse doenças de primeira e de segunda. Nós, os doentes mentais, sofremos pelo que a maleita nos provoca e pelo que nos é infligido pela sociedade. Desconheço a realidade noutros países ditos civilizados. Mas conheço muito bem a realidade nacional em meio social, familiar e hospitalar. Se quiser pintá-la de uma cor, pintá-la-ia de cinzento muito escuro. Só não seria totalmente uma realidade negra porque no meu caminho, se foram cruzando pessoas solares, cheias de luz, que com o seu amor, amizade, compreensão, carinho e competência me foram alumiando o caminho...

Hoje, não falo apenas de doença mental, de estigma e de tabu. O que me traz aqui é mais forte, mais estigma, mais tabumaternidade e doença mental. Meu Deus! Que mistura explosiva, dir-me-ão as mentes mais ignóbeis!!

Eu conto com cinco anos de maternidade. Tem sido um percurso difícil, fácil, tristonho, divertido, preocupado, despreocupado, stressante, calmo, tudo isto e muito mais, como na vida de todas as mães, ditas normais.

A maternidade não é a imagem idílica do casal aos beijos a passear o carrinho do recém-nascido à beira-mar. Também é isso, mas é muito mais. É dor, cansaço, orgulho, alegria e sofrimento. Até agora, acho que não disse nada de novo. Muitas mães identificam-se e revêm-se nisto. Se houvesse podium, estaríamos todas orgulhosamente no pedestal de cima, com as flores e a medalha. Assim é, porque damos o nosso melhor. Mas eu... eu nunca ficaria no cimo, o  meu estatuto não mo permite por ser Mãe Bipolar!

Tenho um Filho e sou doente mental. E agora? Dois problemas, os que me são intrínsecos e os que a sociedade me inflige. Ser mãe portadora de doença mental em Portugal é mau. Sofre-se muito. Sofro por temer adoecer, sofro porque me olham de lado, porque me criticam, porque me condenam. É como se por ser doente mental não tivesse direito à maternidade.

Falar de doenças psiquiátricas é falar de medicação e tratamento. Nenhum doente pode ter qualidade de vida, ou mesmo levar uma vida dita normal, se não estiver devidamente medicado. As alterações comportamentais de que padecemos não nos permitem levar uma vida estável aos mais diversos níveis.

Sendo bipolar e mãe, tendo mais essa responsabilidade (cuidar do M.), tenho de continuar a medicação para poder exercer esta função acrescida. Nenhuma pessoa doente, consegue cuidar do outro, principalmente quando a maleita se manifesta comportamentalmente. Uma mãe bipolar tem de ter essa consciência. Por mim e pelo M. tenho de estar equilibrada.

Ser mãe bipolar é um grande desafio. É um desafio que se enfrenta diariamente. Ama-se muito, mas também se sofre muito! Por amor a mim e ao M. não descuro os meus tratamentos. Se antes podia esquecer-me de uma toma ou outra, hoje em dia, sou muito escrupulosa nesse aspeto. Tenho de ter sempre presente que, se a saúde me falha, deixo de ser capaz de cuidar do meu Filho. Sofro essencialmente pelo temor que tenho de vir a adoecer. Sei que, quando adoeço, o mundo desaba. Nada interessa, nem mesmo a própria vida! Cuidar de uma criança nestas condições é deveras doloroso, pois se nem sequer consigo cuidar-me a mim.  

Por mais chocante que possa parecer, as crises depressivas convidam às ideias suicidárias. E sim, temo acabar com a vida e deixar o meu Filho órfão! É um temor latente que constantemente sinto, mas só nos meus momentos saudáveis.

Por outro lado, as crises psicóticas são difíceis de controlar. Não fosse a grande consciência que tenho da minha doença, estes episódios poderiam deixar-me completamente atordoada.

Pese embora tudo isto ser mãe bipolar é bom! É bom porque faz de mim uma mãe mais atenta e preocupada. Ao temer a hereditariedade, estou atenta às manifestações precoces que possam surgir no meu Filho e mais preparada para o ajudar.

Ser mãe bipolar tem sido uma experiência de amor e sofrimento. À semelhança da manifestação da doença, oscila-se entre estes dois sentimentos opostos. Se faz de mim feliz e realizada, é também uma trajetória de temor, de receios e até de momentos de pânico. Não é fácil ser doente mental e mãe, mas não é impossível. Para mim, nunca foi concebível ponderar não ter nenhum filho por causa desta doença. Sinto-me uma pessoa igual a milhões de outras!

Não posso terminar sem referir o apoio incondicional que tenho da família que me protege, auxilia e ampara. Se sou a mãe que sou, também a ela o devo. E, como sei que a importância da família é tão crucial por experiência própria, procurarei, também eu, ser o apoio incondicional do M. pela vida fora!!

E assim sou eu: Mãe bipolar...