segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Filho és, Pai serás


Pese embora toda a estravagância e loucura que me possa ser atribuída, pois já não me iludo com aqueles que se dizem livres de ideias parvas e feitas, fui, e sou dona de uma vida pacata e normal. Movo-me dentro de um corpo, agora frágil, amanhã não sei. Não estou só no mundo. Tenho família e bons amigos. Tudo gente boa e séria. Pessoas dóceis, amáveis, empáticas e sempre presentes nos bons e nos maus e nos piores momentos. Conto já com um pouco mais do que quatro décadas. No fundo, apesar dos apesares, consigo vislumbrar que tive e tenho uma vida boa.
É certo que me debato com questões um pouco complexas, que não são, por ora, oportunas de mencionar. Mas problemas endógenos e intrínsecos, que insistem em boicotar-nos o simples viver quotidiano, quem não os tem? Como toda a gente, tenho dias bons e dias maus. Não sendo uma pessoa, por norma, pessimista, há dias em que não consigo ver a luz. Mas, não sei bem como nem porquê, possuo esta estranha capacidade, quiçá réstia de um passado de atleta, de, num repam, dar um salto mortal, e inverter mentalmente a situação. 

Não sou de baixar a cabeça perante uma injustiça. Seja lá qual ela for. Se contar o rol de histórias caricatas, possivelmente não sairia daqui. Certo dia, em pleno Metro de Lisboa à hora de ponta, estavam bancas onde se tratava do cartão Lisboa Viva, numa altura de transição. Estava eu na fila, quando me apercebo que um fulano, a ser atendido, se zangou com a menina que estava a trabalhar. Percebi rapidamente que ele estava apenas a descarregar as suas frustraçõezinhas pessoais, como ela era brasileira, soltava-lhe impropérios. Porque estava na terra dele, porque nem português falava (brasileirês, não sei!), porque vai para a tua terra, porque assim e porque assado…. A garota chorava. Pudera! Uns polícias faziam a ronda, e o parvalhão chamou-os para se queixar (vá-se lá saber porquê!). Os senhores fardados estavam baralhados com o discurso acelerado e nervoso. Só se ouvia: Eu pago os meus impostos! Eu pago os meus impostos! A menina chorava… Num meio que não era o seu, na confusão da hora de ponta, eu não teria feito outra coisa. Como sempre me acontece nestas ocasiões, subiram-me as náuseas que sinto quando observo o extravasamento de assuntos mal resolvidos, vertidos violentamente em quem se sabe poder magoar impunemente. Vomitei! Dirigi-me rapidamente aos polícias, dizendo que tinha assistido à cena toda, que o queixoso foi mau, rude, deseducado e desrespeitador para com a menina. E tudo desnecessariamente. Eis se não quando, o povoléu à minha roda, junta a sua à minha voz. Imediatamente abandonei a cena. As pessoas ficaram todas a falar com os polícias, e o ordinário saiu em passo apressado, soltando granidos. 

Haja coragem. Coisa que não vejo muito à minha volta. Surpreende-me ver pessoas auto votarem-se ao silêncio e à prepotência de outrem. No episódio atrás relatado, foi impossível não ouvir mentalmente a famosa música de António Variações - quando fala um português… - Estranho país este, em que as pessoas exercem a sua mais séria cidadania em discussões futebolísticas, se engalfinham com a claque do outro clube e gritam na TV a plenos pulmões que o árbitro é um ladrão. Mas sair do rebanho para defender quem está ao lado a ser espezinhado, ou pegar numa caixa que ficou à porta de um café com uma gata lá dentro e levá-la para casa, na esperança de lhe encontrar uma casa nova. E chorar porque fez tudo para a salvar, mas ela definhou de desgosto provocado pelo abandono. E casar uma semana depois de coração cheio e alma triste. Foi premonitoriamente batizada por mim de Aba, diminutivo de abandonada. Abandono que lhe traçou o destino. 

Assim passo eu pela vida, apelidada de louca, bruxa má, alcoólatra e madrasta prepotente. Quem me conhece, conhece também a minha natureza sincera, frágil, combativa, impulsiva, aventureira, atrevida e livre, mas má nunca! Fiz as minhas maldades, é certo. Por vezes um pouco premeditadas. Costumava fazer parelha noturna com uma grande amiga, e a verdade é que a nós duas, ninguém nos agarrava ou punha freio. Andanças à parte e vinho à pressão de lado (de que nem sinto o cheiro há mais de uma década), não sou má. Por vezes, confesso que adorava sê-lo. Prefiro o apelido de justiceira, se é que sou digna de algum.

Os meus pares, quando lhes dou conta de lutas e causas, ouvem-me, dão-me crédito. Compreendem o meu sofrimento. O certo é que, pedantismos à parte, tenho sempre razão. Quando ergo a espada da determinação porque farejo o laxismo, sei que podia passar por Rei Artur. E porque a corrupção moral (porque a outra é-me um tanto indiferente) polvilha este nosso Portugal, o certo é tudo ficar na mesma. Sei que há um ou outro organismo que funciona com seriedade, e esses já têm intercedido por mim, no entanto, quem erra não quer ficar mal na foto. Mas a verdade é que erra e, para lá da foto, está a radiografia…

Durante bastante tempo, dediquei-me a salvar, mimar, acolher, alimentar, tratar e afins, de gatos de rua, abandonados, maltratados, doentes, recém-nascidos sem mãe, etc.. Vi coisas terríveis. Orelhas cortadas, escalpes arrancados, patas retorcidas, queimaduras provocadas por cigarros apagados em lombos de felinos fofos, dóceis e inocentes. Uns, provavelmente mais doridos dos tratos humanos, olhavam-me com desconfiança. Por vezes soltavam sibilos para espantar o predador. Outros, também vergonhosamente enxovalhados, não perdiam a sua docilidade intrínseca, confiavam, eram dados. Quando alguém aparecia com o desejo de adotar, seduziam os potenciais donos, que muitas vezes se rendiam aos seus encantos. Quem sabe mais inteligentes, com a noção de que a entrega e uma nova tentativa de confiar, lhes pudesse garantir um lar e uma vida nova. Também lidei com feras, cheguei a ir parar ao Hospital por causa de uma valente dentada. Mas continuo a dar-me descontraidamente ao primeiro gato que se cruzar no meu caminho. Nunca me neguei a agir perante uma causa que ache que valha a pena. Não me quedo na preguiça de achar que outros farão qualquer coisa para mudar. Nem sequer sou de me sentar no sofá a dizer que está tudo mal e ninguém faz nada. 
Certa vez, ao saber da demolição de um bairro de lata, cuja desratização se faria dali a um par de semanas, eu e mais quantas, arregaçámos as mangas e revirámos os escombros à cata de ninhadas, gatos encolhidos e amedrontados debaixo de telhas de zinco, etc.. À luz do sol e da lua, fizemos o que pudemos. Não! Acho que não sou má. Tenho, sim, sentimentos. Mas a verdade é que estes são sinceros, e se é para dizer mal, digo, se é para lutar contra o mal, luto! Não me chame eu Elsa!

Nestas últimas semanas, tem-me acontecido algo inédito em mim - repouso forçado. Como estou com problemas graves a nível da espinal-medula, as dores, cada vez mais atrozes, obrigam-me a muitos momentos deitada, ao longo do dia. Aproveito para ler, mas também para me encontrar. Às vezes, confesso que me apetece fugir de mim mesma. Como ando revoltada e espantada com o poder da estupidez coletiva, a corrupção moral, a prepotência, o abuso de poder e outras tantas atrocidades sociais, perco-me em pensamentos negativos. Hoje, ao telefone com a minha Mami, ela empregou uma expressão muito adequada, acontecimentos venenosos. Coisas de quem vive em terras de almíscaros!

Refletir sobre a vida, nunca foi o meu forte. Analiso sempre tudo muito meticulosamente sob o ponto de vista prático, da ação. Quando o problema surge, não há nhonhôs. À boa maneira popular - encara-se o boi pelos cornos. Mas a minha ingenuidade é tal, que quando parto para resolver um assunto, seja ele qual for, já estou a par da legislação toda para não incorrer, nem no erro, nem na ilegalidade. E ingenuidade porquê? Por exemplo, já tem acontecido, que nem sequer os próprios agentes do órgão sabem bem como se trabalha e o que está estipulado. Chega a ser tal o bizarro da coisa, que já me disseram que o artigo de um diploma, que vem primeiro, anula o que vem depois. Qualquer coisa do género: não vê que o 6 vem antes do 88? E estão estas alminhas alapadas ao tacho!
 
Ora, estou eu no sossego dos meus períodos de descanso, quando dou por mim a pensar profundamente na vida. Como deixei o egoísmo para trás no dia em que fui mãe, é essencialmente um coração fora do meu que sinto a bater. Ando, honestamente angustiada. Posso até estar a ser pessimista. Mas de momento não consigo vislumbrar a esperança de que tanto necessito. Nada como um filho para nos mudar tão drasticamente. Não aquela mudança de natureza, pois essa manter-se-á. Mas a mudança de quem nunca valorizou a interiorização dos sentimentos, dando sempre primazia à ação e ao atirar para trás das costas. 
Eu tenho um Irmão que nunca mais vou abraçar, ou pelo menos nesta vida cá na terra. Ele abandonou o corpo com a tenra idade de 24 anos, no ano 2000. É impossível esquecer o baique que a minha vida levou nesse dia 20 de setembro. Tal autómato, nunca cheguei a perceber o meu papel nas cerimónias. Acho que a única pessoa que realmente sabia que ele estava morto, era a minha Mãe. Tenho a estranha sensação de que eu estava num canto, rodeada de amigos, sem lhes ver a cara. O meu Pai estaria rodeado de familiares e colegas, dezenas deles. As pessoas não paravam de chegar. De todos os cantos do País. Nessa manhã, antes de ir para a Igreja, a minha Mãe disse-me, vai bonita para te despedires do teu irmão. Vesti umas calças pretas, uma camisolinha branca e um lacinho na cabeça, também branco. Poucos dias depois, após olhar para o céu e ver o seu corpo esfumar-se pelo ar, subi a um barco, nas praias da Caparica, onde a minha mãe verteu as suas cinzas, que eu quis sentir por entre os meus dedos e que foram desaparecendo na imensidão do mar...

Os dias, os meses, os anos passaram, terminei o curso, fiz-me professora. Tirei o Mestrado com a nota máxima, embora com a alma em luto por ter visto partir o meu muito amado Pai, sete dias antes de estar perante um jurí de catedráticos, a defender um trabalho de anos. Ao longo desses anos de investigação, e porque adoeci gravemente, tendo sido submetida a dois internamentos psiquiátricos, agarrei-me à estrela que há quatro anos olhava por mim. E porque a vida tem destas coisa, ali estava eu, de pé, tão serena como quem está deitada na areia da praia, somente a ouvir as ondas que batem na areia devagarinho, e com essa serenidade, que também não sei de onde veio, da minha boca soou uma pequena e doce dedicatória à memória do Senhor meu Pai. Em redor da sala, vertiam-se lágrimas de tristeza e saudade, mas eu sentia-me feliz dentro da amargura. Feliz porque sabia que ele devia estar muito orgulhoso de mim. E ainda hoje consigo ver uma cópia da minha tese na mesa de cabeceira do Hospital, que ele começou a ler e que ainda conseguimos discutir os dois, em memória dos bons velhos tempo, mas que não conseguiu terminar…

Não sofri a dor de perder um Filho, embora esse seja um espetro que irá pairar para sempre na minha cabeça. Com todos os problemas que o meu Filho teve de enfrentar no passado recente, sabendo eu que ele não está bem, é óbvio que sofro. Esse sofrimento é acicatado pela raiva que tenho a quem lhe fez mal. Não consigo compreender como se pode utilizar um menino para atingir alguém. E como conheço bem demais, dada a minha natureza de tratar as coisas a fundo, tudo aquilo que foi dito e feito, a quantidade de impropérios infundados, sonegação de informação e documentação e tudo o mais que o meu saudoso Pai se aqui estivesse diria, que a minha moral e educação nem me permite catalogar, não posso deixar de considerar que o meu Filho foi atirado a um poço de violência gratuita. 

Para além de lhe proporcionar o tratamento adequado para que ele possa ultrapassar o mal que lhe foi feito, sempre o levei aos melhores especialistas que conheço em Lisboa, seja para o que for, apenas lhe posso garantir a toda a hora o meu amor incondicional. Não cesso de lhe dizer aquilo que sempre me disseram a mim - Vou gostar sempre de ti, faças o que fizeres, aconteça o que acontecer. Não haverá no mundo ninguém capaz de te amar mais do que eu.
Os meus pais sempre me amaram incondicionalmente, esta é uma expressão que ouvi muitas vezes ao longo da minha vida. Mas agora sou capaz de a entender e sentir. Porque, filho és, pai serás… 

domingo, 4 de novembro de 2018

As coisas são o que são...




Como ultimamente não me tenho cansado de dizer, os últimos onze meses foram de muita aprendizagem. Aperfeiçoei bastante o meu olhar crítico perante as instituições, as suas funções sociais e os desajustes das gentes que as compõem. Sempre fui mulher de causas e de amor às camisolas que fui vestindo ao longo da vida. O meu falecido Irmão dizia uma coisa que repito para mim, dezenas e dezenas de vezes ao dia: as coisas são para fazer com empenho. Nem sempre terá sido fácil consciencializar o desrespeito existente pelas vidas alheias, bem como o medo pidesco que se vive em certas zonas do País, relativamente a poderes instalados. 

Apesar de nunca ter dado grande relevância à estupidez alheia, a verdade é que desta vez, esta, por ter sido exercida de forma coletiva e de ter perturbado bastante o equilíbrio emocional do meu Filho, me cansou bastante. É óbvio que jamais simpatizarei com a maioria destas gentes. Não foi fácil, mas foi possível, e hoje é perfeitamente natural passar pelas pessoas e nem sequer as ver. É simplesmente comco se fossem transparentes. Sempre achei que um Bom Dia até a um pobre se dá, mas parece-me que este dito se aplica apenas à pobreza material, pois a outra não merece o mais pequeno esforço vocal!

Estes foram tempos de mudança e longos meses de adaptação. Como referi, detetei muita inocência em mim. Por outro lado nunca me tinha apercebido tão bem do privilégio que tenho em ser capaz de  ter um olhar global sobre a realidade sociológica do País.

Tenho um pé na Capital, um na praia e outro no interior. A minha vida foi feita em Lisboa, sempre passei fins-de-semana e férias na Caparica. Vivi muito por lá, acabei mesmo por casar com um caparicano. Conheço toda a envolvência e modo de vida dos pescadores e suas famílias, cresci com eles. Desfrutei da languidez da vida despreocupada em que o tempo não se contava, não havia para onde ir, nem onde estar. O mar engolia o sol todos os dias e nós desfrutávamos essa imagem, sentados na varanda da esplanada, que hoje não existe. A minha Caparica já não é a minha Caparica. Isto são contas de outro rosário...

Também conheço de perto a infância vívida nos pátios dos prédios, onde depois da escola, andávamos de skate e de patins, e por vezes os tombos faziam quebrar os vidros das portas. A vizinhança chamava a polícia, à noite, por causa do barulho de bandos de adolescentes, agarrados às violas, todos juntos, a cantar.

Conheço o ram ram do autocarro, do metro e das corridas, em salto alto, carregada de livros, para não me atrasar para o exame, porque nesse dia a Carris fazia greve. As noitadas de estudo, os prazos para a entrega de trabalhos. Como professora, o stress das aulas, a agressividade dos alunos que, por mais grave que fosse a falta, era resolvida na hora!
A agitação das noites no Bairo Alto ou no Cais do Sodré, para onde caminhava semanalmente, sem antes ficar meia hora defronte ao espelho a encher-me de rímel e riscos nos olhos. À saída, enquanto esperava o elevador, costumava cantar para a minha Mãe - Não venhas tarde...

Já para não mencionar o breve período em que vivi em África, me punha a saltar de baixo das chuvas trocais tórridas e costumava apanhar ananases, que me picavam os braços...

Seria exaustivo analisar tudo o que aprendi e vi nas viagens que fiz, que ascendem às duas dezenas. Vi muito, experienciei muitas coisas e conversei com muita gente em vários cantos do mundo. Desde países evoluidíssimos até ao mais completo oposto, comporto um manancial rico no que toca a observar aquele que é agora o meu mundo.

Há meia dúzia de anos que me mudei para a minha quinta no interior. Acho que já estou cá há tempo suficiente para afirmar que, por aqui, nem sequer tenho o estatuto de portuguesa. Não digo isto com base nos acontecimentos mais recentes. É notória a ostracização profissional e social a que somos votados. Pese embora a minha profissão ou habilitações, serei sempre desqualificada em relação a afilhados/as, independentemente dos canudos (ou falta deles). Não demorei muito tempo a chegar a essa conclusão.
No entanto, acabei por tomar a melhor decisão da minha vida - A minha Missão é a minha Família. Quem sabe se até poderia ter sido uma boa profissional (principalmente a avaliar pelo estado deplorável em que estão os museus da terriola). A verdade é que, a despeito do grave problema de dores que tenho, prefiro um milhão de vezes contribuir para a felicidade dos meus, do que ter de estar no meio de pessoas que não conheço e a fazer sabe-se lá o quê.

Voltando ao cerne da questão, interessa-me, aqui, estabelecer uma espécie de mapa de vida do Portugal que eu conheço. No fundo, sei que este é o meu lugar. Mudámo-nos para aqui para o melhor e para o pior. Tanto eu como o R. somos aficionados pela natureza, pelo ar livre, pela atividade física entre as árvores. Adoro nadar no rio frio nos dias quentes de verão, principalmente agora que o M., de braçadeiras, me acompanha de uma ponta à outra. A risota e brincadeira naquelas águas cristalinas é algo que não tem preço. Quando eu estava melhor da coluna, costumávamos, os três, fazer grandes caminhadas no mato, subindo montanhas e, no final, tirava o podómetro da cintura e via se tínhamos superado a caminhada anterior. Gosto dos Sábado de manhã, em que faço um pequeno-almoço princepesco, agarro no M., e abalamos para o parque, uma exposição, um museu ou mesmo uma igrejinha nas imediações.

Aos Domingos, que apelidei de Dia da Família, tiramos proveito de um dia na semana para, simplesmente estarmos juntos. Dar um passeio, trabalhar na quinta, apanhar lenha ou, apenas ficar no salão a brincar, contar histórias ou ver bonecos animados, num dia frio e chuvoso. Como há uma sessão matinal de cinema infantil gratuito, por perto, de vez em quando é uma opção. Estou sempre a engendrar atividades para fazer com o miúdo, desde mais simples a mais complexas. Por vezes basta dar-lhe uma massa de pizza e ingredientes e estar a fazer a outra pizza, para passar bons momentos com os nossos rebentos.

Apesar dos apesares, não posso dizer que simpatizo com as gentes em geral, mas a mais pura das verdades é que adoro tudo isto. No fundo, a escolha é minha. Pude, um dia dizer, vou escolher onde vou morar - na cidade, na praia ou no campo. Escolhi a pureza do ar e das paisagens. A vida no interior tem isto de bom. É uma vida saudável, o M. pode brincar na terra, ao ar livre. É bom ver que as calças de inverno chegam ao verão, sem servir, e rotas nos joelhos. São incontáveis as vezes em que está de joelhos, lá fora a empilhar pedras ou a revolver a terra, a plantar feijões e batatas por aí, cujas plantas brotam dos sítios mais inesperados. Já para não falar nas nódoas de plantas tintureiras ou de outra coisa qualquer, que eu passo horas a tentar tirar!

Sabemos que a vida é boa quando acordamos e temos vontade de enfrentar o dia. Tenho rancor das pessoas que me boicotaram a vida, é certo, mas por outro lado tento compreender o fenómeno. De manhã, pelas 8 horas, à porta da Junta de Freguesia, na aldeia, a cerca de 4km, diariamente aguardo com o M., a camioneta que o leva à escola. Entretenho-me sempre a ver os cartazes, cartazes esses que refletem muito do Portugal profundo. Cultura é baile, feiras de vinho e enchidos e excursões a Fátima. Não se anda longe dos três F's. Como dizia o meu Pai: O futebol é que induca e o fado é que enstrói! 

Neste país de contrastes, onde o que se diz é verdade, pois Portugal, à volta de Lisboa e Porto, é paisagem. Não falo de árvores nem de prédios, mas de outras estruturas. A estrutura das mentalidades. O interior humano não vive no século XXI, mas as tentativas de alcançá-lo, em tudo o que ele tem de pior, são desesperadas! Tem a sua piada ver raparigas as volante, com o carro encostado, em grandes aceleradelas em manifesta mostra de emancipação. Demarcando-se assim da imagem da mãe ou da avó que, de lenço na cabeça e balde no braço, vai de madrugada pela estrada afora, até ao prédio, onde tem a sua leira, apanhar as couves para os coelhos e para o caldo. Vai-se cedo à lavra e ao Domingo à missa, nunca se faltando a um velório, não vão os outros pensar isto ou aquilo. Ser viúve e não trajar preto é sacrílego... e isto e aquilo...

Não vejo mal nas gentes de lenço, muito menos na sua genuinidade, mas confunde-me esta negação da essência do ser e das origens. A hibridez dá azo ao resultado de ser-se nada ou algo muito estranho. Tirando as máscaras, o atraso é grande e o analfabetismo funcional é avassalador, mas no fundo, eufemismos à parte, as coisas são o que são...