domingo, 4 de novembro de 2018

As coisas são o que são...




Como ultimamente não me tenho cansado de dizer, os últimos onze meses foram de muita aprendizagem. Aperfeiçoei bastante o meu olhar crítico perante as instituições, as suas funções sociais e os desajustes das gentes que as compõem. Sempre fui mulher de causas e de amor às camisolas que fui vestindo ao longo da vida. O meu falecido Irmão dizia uma coisa que repito para mim, dezenas e dezenas de vezes ao dia: as coisas são para fazer com empenho. Nem sempre terá sido fácil consciencializar o desrespeito existente pelas vidas alheias, bem como o medo pidesco que se vive em certas zonas do País, relativamente a poderes instalados. 

Apesar de nunca ter dado grande relevância à estupidez alheia, a verdade é que desta vez, esta, por ter sido exercida de forma coletiva e de ter perturbado bastante o equilíbrio emocional do meu Filho, me cansou bastante. É óbvio que jamais simpatizarei com a maioria destas gentes. Não foi fácil, mas foi possível, e hoje é perfeitamente natural passar pelas pessoas e nem sequer as ver. É simplesmente comco se fossem transparentes. Sempre achei que um Bom Dia até a um pobre se dá, mas parece-me que este dito se aplica apenas à pobreza material, pois a outra não merece o mais pequeno esforço vocal!

Estes foram tempos de mudança e longos meses de adaptação. Como referi, detetei muita inocência em mim. Por outro lado nunca me tinha apercebido tão bem do privilégio que tenho em ser capaz de  ter um olhar global sobre a realidade sociológica do País.

Tenho um pé na Capital, um na praia e outro no interior. A minha vida foi feita em Lisboa, sempre passei fins-de-semana e férias na Caparica. Vivi muito por lá, acabei mesmo por casar com um caparicano. Conheço toda a envolvência e modo de vida dos pescadores e suas famílias, cresci com eles. Desfrutei da languidez da vida despreocupada em que o tempo não se contava, não havia para onde ir, nem onde estar. O mar engolia o sol todos os dias e nós desfrutávamos essa imagem, sentados na varanda da esplanada, que hoje não existe. A minha Caparica já não é a minha Caparica. Isto são contas de outro rosário...

Também conheço de perto a infância vívida nos pátios dos prédios, onde depois da escola, andávamos de skate e de patins, e por vezes os tombos faziam quebrar os vidros das portas. A vizinhança chamava a polícia, à noite, por causa do barulho de bandos de adolescentes, agarrados às violas, todos juntos, a cantar.

Conheço o ram ram do autocarro, do metro e das corridas, em salto alto, carregada de livros, para não me atrasar para o exame, porque nesse dia a Carris fazia greve. As noitadas de estudo, os prazos para a entrega de trabalhos. Como professora, o stress das aulas, a agressividade dos alunos que, por mais grave que fosse a falta, era resolvida na hora!
A agitação das noites no Bairo Alto ou no Cais do Sodré, para onde caminhava semanalmente, sem antes ficar meia hora defronte ao espelho a encher-me de rímel e riscos nos olhos. À saída, enquanto esperava o elevador, costumava cantar para a minha Mãe - Não venhas tarde...

Já para não mencionar o breve período em que vivi em África, me punha a saltar de baixo das chuvas trocais tórridas e costumava apanhar ananases, que me picavam os braços...

Seria exaustivo analisar tudo o que aprendi e vi nas viagens que fiz, que ascendem às duas dezenas. Vi muito, experienciei muitas coisas e conversei com muita gente em vários cantos do mundo. Desde países evoluidíssimos até ao mais completo oposto, comporto um manancial rico no que toca a observar aquele que é agora o meu mundo.

Há meia dúzia de anos que me mudei para a minha quinta no interior. Acho que já estou cá há tempo suficiente para afirmar que, por aqui, nem sequer tenho o estatuto de portuguesa. Não digo isto com base nos acontecimentos mais recentes. É notória a ostracização profissional e social a que somos votados. Pese embora a minha profissão ou habilitações, serei sempre desqualificada em relação a afilhados/as, independentemente dos canudos (ou falta deles). Não demorei muito tempo a chegar a essa conclusão.
No entanto, acabei por tomar a melhor decisão da minha vida - A minha Missão é a minha Família. Quem sabe se até poderia ter sido uma boa profissional (principalmente a avaliar pelo estado deplorável em que estão os museus da terriola). A verdade é que, a despeito do grave problema de dores que tenho, prefiro um milhão de vezes contribuir para a felicidade dos meus, do que ter de estar no meio de pessoas que não conheço e a fazer sabe-se lá o quê.

Voltando ao cerne da questão, interessa-me, aqui, estabelecer uma espécie de mapa de vida do Portugal que eu conheço. No fundo, sei que este é o meu lugar. Mudámo-nos para aqui para o melhor e para o pior. Tanto eu como o R. somos aficionados pela natureza, pelo ar livre, pela atividade física entre as árvores. Adoro nadar no rio frio nos dias quentes de verão, principalmente agora que o M., de braçadeiras, me acompanha de uma ponta à outra. A risota e brincadeira naquelas águas cristalinas é algo que não tem preço. Quando eu estava melhor da coluna, costumávamos, os três, fazer grandes caminhadas no mato, subindo montanhas e, no final, tirava o podómetro da cintura e via se tínhamos superado a caminhada anterior. Gosto dos Sábado de manhã, em que faço um pequeno-almoço princepesco, agarro no M., e abalamos para o parque, uma exposição, um museu ou mesmo uma igrejinha nas imediações.

Aos Domingos, que apelidei de Dia da Família, tiramos proveito de um dia na semana para, simplesmente estarmos juntos. Dar um passeio, trabalhar na quinta, apanhar lenha ou, apenas ficar no salão a brincar, contar histórias ou ver bonecos animados, num dia frio e chuvoso. Como há uma sessão matinal de cinema infantil gratuito, por perto, de vez em quando é uma opção. Estou sempre a engendrar atividades para fazer com o miúdo, desde mais simples a mais complexas. Por vezes basta dar-lhe uma massa de pizza e ingredientes e estar a fazer a outra pizza, para passar bons momentos com os nossos rebentos.

Apesar dos apesares, não posso dizer que simpatizo com as gentes em geral, mas a mais pura das verdades é que adoro tudo isto. No fundo, a escolha é minha. Pude, um dia dizer, vou escolher onde vou morar - na cidade, na praia ou no campo. Escolhi a pureza do ar e das paisagens. A vida no interior tem isto de bom. É uma vida saudável, o M. pode brincar na terra, ao ar livre. É bom ver que as calças de inverno chegam ao verão, sem servir, e rotas nos joelhos. São incontáveis as vezes em que está de joelhos, lá fora a empilhar pedras ou a revolver a terra, a plantar feijões e batatas por aí, cujas plantas brotam dos sítios mais inesperados. Já para não falar nas nódoas de plantas tintureiras ou de outra coisa qualquer, que eu passo horas a tentar tirar!

Sabemos que a vida é boa quando acordamos e temos vontade de enfrentar o dia. Tenho rancor das pessoas que me boicotaram a vida, é certo, mas por outro lado tento compreender o fenómeno. De manhã, pelas 8 horas, à porta da Junta de Freguesia, na aldeia, a cerca de 4km, diariamente aguardo com o M., a camioneta que o leva à escola. Entretenho-me sempre a ver os cartazes, cartazes esses que refletem muito do Portugal profundo. Cultura é baile, feiras de vinho e enchidos e excursões a Fátima. Não se anda longe dos três F's. Como dizia o meu Pai: O futebol é que induca e o fado é que enstrói! 

Neste país de contrastes, onde o que se diz é verdade, pois Portugal, à volta de Lisboa e Porto, é paisagem. Não falo de árvores nem de prédios, mas de outras estruturas. A estrutura das mentalidades. O interior humano não vive no século XXI, mas as tentativas de alcançá-lo, em tudo o que ele tem de pior, são desesperadas! Tem a sua piada ver raparigas as volante, com o carro encostado, em grandes aceleradelas em manifesta mostra de emancipação. Demarcando-se assim da imagem da mãe ou da avó que, de lenço na cabeça e balde no braço, vai de madrugada pela estrada afora, até ao prédio, onde tem a sua leira, apanhar as couves para os coelhos e para o caldo. Vai-se cedo à lavra e ao Domingo à missa, nunca se faltando a um velório, não vão os outros pensar isto ou aquilo. Ser viúve e não trajar preto é sacrílego... e isto e aquilo...

Não vejo mal nas gentes de lenço, muito menos na sua genuinidade, mas confunde-me esta negação da essência do ser e das origens. A hibridez dá azo ao resultado de ser-se nada ou algo muito estranho. Tirando as máscaras, o atraso é grande e o analfabetismo funcional é avassalador, mas no fundo, eufemismos à parte, as coisas são o que são...

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