sexta-feira, 15 de setembro de 2017

O mundo através das grades da ala psiquiátrica


Após um internamento de quarenta e quatro dias no Departamento de psiquiatria e saúde Mental do Hospital da zona, cheguei a casa há, precisamente, duas semanas.
A 20 de Julho, metida numa ambulância e muito perturbada mentalmente, guardo fraca memória da minha chegada ao Hospital. Reservo como recordação um banho de chuveiro, após o qual enfiei um pijama da instituição. Devo ter comido qualquer coisa, pois perguntaram-me se estava com fome e acho que me resignei com um par de bolachas e um copo de leite. Seria meio-dia quando a minha Médica de Família chamou uma ambulância para me levar ao Hospital, deviam ser umas dez da noite quando dei entrada no internamento.
Não me lembro se dormi mal ou bem. Nos primeiros dias senti-me uma zombie deambulando pelo corredor ou deitando-me na cama onde me entregava a muitas horas de sono.
Devagar lá me fui endireitando. Não se pode falar de uma recuperação linear, pelo contrário, foi uma recuperação lenta. Fiz muitas análises, o médico foi ajustando as dosagens dos medicamentos e, finalmente, pude vislumbrar um pouco de luz.

Aos poucos, fui conhecendo o lugar e as pessoas. Vi umas entrar e sair e outras a quem só disse adeus na hora de deixar o internamento. No último dia, eu era a "cliente" mais antiga.

A par da crise em si, outras inquietações perturbavam a minha mente. Com o meu Filho em vias de entrar para o 1.º ano de escolaridade, ao longo dos quarenta e quatro dias, temi não conseguir assistir a tão importante momento.

O internamento psiquiátrico é o lugar onde se entra em estado de extrema confusão mental, de onde se julga nunca mais voltar para casa com a mente refeita. Quando o abismo em que se caiu provoca tão drásticas medidas (internar a pessoa), não nos é possível crer que um dia as coisas voltarão ao normal, que a vida voltará a cair nas mesmas rotinas azafamadas, que a minha capacidade para me amar e estimar voltará.

Neste caso em particular, pois não foi o primeiro internamento prolongado a que estive sujeita, entrei em estado depressivo agudo e ligeiramente psicótico. Com as faculdades cognitivas imensamente reduzidas, é natural que tenha perdido, lá dentro, a esperança de as recuperar, naquele lugar onde a fragilidade que nos cerca nos devora a autoestima. 

Do lugar de onde, do seu interior, as grades do internamento da psiquiatria parecem enormes e se olham no horizonte as montanhas da Serra a perder de vista, julguei irremediavelmente ter perdido o amor à minha vida.
Estranho pensamento, este, a de uma mãe! Tal o fosso que criei em relação à Família, que julguei não voltar a amá-la como até então. A doença pareceu ter invadido o meu corpo de tal forma que se terá apoderado dos meus sentimentos mais profundos. Mil vezes se assomou à minha cabeça a dúvida de como poderia eu algum dia voltar a ser quem tinham sido. De como poderia ser novamente capaz de tomar as rédeas da minha vida. Mil vezes me culpei por privar o meu Filho da minha companhia, embora acreditasse com todas as minhas forças que ter uma mãe mentalmente perturbada, irremediavelmente perturbada, não lhe serviria de nada.

Dormi horas esquecidas, inúmeras vezes sem ter vontade de ver ninguém, embora me reconfortasse a presença do R. ou da minha Mãe nas horas das visitas. Não era raro dormir enquanto eles, pobres coitados, olhavam para o ar! Embora isso me fizesse sentir um traste, era bom sentir o amor que emanava da sua comparência assídua, o que era reforçado pelo esforço feito pela minha Mãe, por estar deslocada cerca de 300km da sua casa.

Fui autorizada a estar na presença do meu Filho e do R. durante cerca de 20 minutos do lado de fora das portas do internamento. Das vezes em que isso aconteceu, no final das visitas, ficava exausta e até um pouco aliviada por poder ir para a cama. Tal facto fazia-me sentir bastante mal, mas a verdade é que não conseguia evitar o cansaço que me assolava.

Numa estadia hospitalar as rotinas são rigorosas, o internamento psiquiátrico não constitui exceção. Por vezes fui forçada a desempenhar algumas rotinas básicas do dia-a-dia, como comer ou tomar banho. Em estados depressivos profundos é-se capaz de ficar o dia inteiro a dormir. Não querendo falar pelos outos, no meu caso, faço-o porque sinto muitas dores no corpo, falta de forças e sono (penso que seja uma reação de defesa do corpo). Por este motivo os meus primeiros tempos deste internamento foram passados em grande parte a dormir. Comunicar com as pessoas que me rodeavam (profissionais de saúde e pacientes) foi um mal necessário, reduzindo-se ao indispensável. Excetuando os médicos, como os quais tinha ânsia de falar, na esperança de me retirarem do torpor que me enleava, os diálogos eram escassos. A Elsa sorridente, brincalhona e comunicativa estava adormecida (mas na altura, julgada morta para sempre). Houve alturas em que penso até, ter sido rude para algumas pessoas.
Refugiada na cama que me destinaram, lacrimejei a jorros, odiei-me, alucinei e senti muitas saudades de uma vida que julguei perdida.

À medida que reaprendi a comunicar, fui conhecendo outras mentes perturbadas que, como eu, devem viver vidas de sofrimento e incompreensão. A vantagem de se passar aqui uma "estadia" é que deve ser dos poucos lugares onde nos consideram doentes "normais". Somos tratados com toda a normalidade, o que cessa quando, à saída, os rostos se voltam para ver quem sai do internamento da psiquiatria!

As semanas foram-se sucedendo, tal como as consultas de psiquiatria, as análises, os ajustes medicamentosos, as monitorizações e as pesagens. Como qualquer paciente de qualquer outro departamento, também eu vivi melhorias e retrocessos. Mais uma vez a perturbação bipolar se revelou bastante ameaçadora do meu equilíbrio emocional. Os ciclos rápidos que me caracterizam foram, por certo, foco de algum cuidado na hora da escolha da terapêutica adequada.

Seria mentira se dissesse que estou como nova. É certo que quando me foi dada a alta, estava na altura de seguir o meu caminho nesta estrada insegura que é a da vida. Há duas semanas que me encontro em casa a reorganizar-me. Não tem sido um processo fácil, tendo em conta que o meu pequeno M. ingressou no 1.º ano. Ainda sinto algumas dificuldades e a minha saúde mental ainda não se encontra restabelecida, pese embora as limitações da minha perturbação psiquiátrica.

E é nestas breves palavras que resumo estes quarenta e quatro dias em que olhei lá para fora através das grades da ala psiquiátrica...