quarta-feira, 11 de julho de 2018

A minha Natureza e a Natureza do meu Coração


Não restam dúvidas, sou da urbe. Foi lá que nasci, cresci, fiz amizades duradouras, estudei, trabalhei, casei e me tornei mãe. Foi também de lá que embarquei para correr mundo, por vezes mundos tão distantes, que nem me davam a certeza de voltar. Foi também lá, que disse um adeus forçado e derradeiro a pessoas que amei com todas as minhas forças. Mas abandonei a urbe por escolha e vontade. Troquei os prédios, as bibliotecas, os museus, os arquivos, a folia das festas de Lisboa e o burburinho constante, por uma vida no campo.

Por ocasião das férias do mais-que-tudo, fomos a banhos à Caparica, como é habitual. À parte estas férias em Família, é relativamente frequente ir à Capital. Tenho sempre coisas para tratar, nem que não seja ver a Mãe ou até uma amiga que viva no estrangeiro, e calhe passar por lá. Gosto também de me abastecer de ingredientes asiáticos e comidas exóticas no Martim Moniz, ver as tendências da moda, passear na Baixa ou vir com o gaiato a um qualquer espetáculo infantil. Enfim, há um sem-número de afazeres que arranjo para dar lá um pulinho.

Desde há um ano a esta parte, nada tem sido fácil na minha vida. Destaco o bullyng sofrido pelo meu Filho e o sofrimento que isso lhe causou e a minha neurocirurgia à coluna. Tenho sofrido de dores excruciantes que tento combater com analgesia prescrita, embora com pouco resultado. À parte todas estas circunstâncias muito pouco simpáticas, nada é comparável à felicidade que atualmente se estampa no rosto do meu Filho. O nosso duro combate contra quem teimosamente fechou os olhos à violência infantil que o M. sofreu pode, finalmente, colher os seus frutos. Ver o M. feliz a brincar na quintinha não tem preço. Este, será um tema para outra missiva que, de momento, não reúno condições para escrever. Estou ainda a digerir.

Mas voltando ao que aqui me trouxe, importa dizer que de cada vez que abandono temporariamente a minha acalmia campesina, ninguém diz que fui nada e criada na urbe. A maioria das gentes das minhas relações partilhou comigo as origens sociais, são pessoas pouco acostumadas a deslocar-se aos ambientes rurais sem ser em viagens pontuais. Nasceram ou estabeleceram-se em Lisboa ou nas áreas adjacentes, por lá têm as suas vidas e criam os seus filhos. Conheço, inclusivamente, pessoas que até são aparentadas com gentes rurais, mas que não nutrem grande apreço por se deslocarem até lá, ainda que por pouquíssimo tempo.

A minha Mãe, nascida na freguesia da Lapa, bem no centro de Lisboa, cresceu entre a sua casa e a casa das avós, também por ali. Na juventude, calcorreou as ruas da Baixa, onde frequentou as Belas-Artes. Ainda hoje, acomodada ao seu carro, percorre os shoppings, as ruas da Baixa em busca de lojas antigas, que vão resistindo, que vendem produtos específicos, ou até mesmo umas quantas que ainda vão sobrevivendo nas Avenidas Novas.

Eu própria, até ser já bem crescida, ainda sou daquele tempo, saudosismos à parte, em que comprava a roupa mais fashion nos Por-fí-rios ou na Casa Africana. Mas havia muitas mais. Quando fiz 18 anos, o meu Pai ofereceu-me uma ida à Baixa no próprio dia 17, um Sábado, se bem me recordo, para um grande passeio a mirar lojas e comprar roupa ao meu contento. Como esquecer esse dia...

Ainda bem miúdos, eu e o meu Irmão, no início de cada estação, lá rumávamos a uma sapataria na Baixa (cujo nome não me recordo) para comprar as sandálias ou os sapatos. Havia também grandes armazéns de roupa, onde desfilávamos contentes com as potenciais peças novas. Era um tempo diferente do atual. Hoje, já não estou a crescer, nem preciso de comprar roupa a cada estação, ainda assim não consigo resistir à "loucura dos trapos".

Era frequente percorrer com o meu pai as marisqueiras da Cidade. A loucura do lugar para o carro, o barulho e  o cheiro a marisco que se sentia por entre as tascas de Alcântara serão, sem dúvida, memórias cravadas no universo da minha história.

Por Fortúnio e "boa média" formei-me na Universidade de Lisboa, a 20 minutos de casa, de Metro. Passei noites em claro, com os olhos enterrados nos livros e nos apontamentos, em Santos no Ágora, um espaço de estudo para universitários, aberto 24 horas por dia. Após terminar a licenciatura, enveredei pelo Ramo Educacional, findo o qual me esperava um estágio, a lecionar a tempo inteiro com Seminários académicos. No estágio, calhou-me uma escola em Alcochete, na altura não passava de uma pequena vila. Não terá sido com muito agrado que me via desterrada para um local que nada me dizia. Não tanto pelo local em si, mas mais pela distância a que ficava do meu "mundo". Revelou-se, afinal, um ano muito alegre e diferente. Tive oportunidade de ter a meu cargo uma turma de alunos da Academia do Sporting, no seio da qual se encontrava o atual Guarda-Redes da Seleção. Do ponto de vista das relações humanas, foi uma época enriquecedora. Toda a bagagem teórica relativa à psicologia do adolescente, de que era detentora, espraiou-se naturalmente no exercício das minhas funções. Encontrei-me profissionalmente, consegui certificar-me de que todos os meus esforços e empenho na aprendizagem de um míster não caíram no vazio. Em cada aula que preparava e dava sentia-me uma estrela cintilante, certa de guiar os meus alunos ao encontro do Conhecimento. 

Nessa época da vida, havia já passado por muito. Tinha, no entanto, a frescura e a leveza da vintena sobre o corpo. Sentia-me livre e despreocupada, um tanto selvagem, até. A vida pertencia-me por inteiro, tinha nas mãos o destino. Era de natureza jovial, divertida, de sorriso fácil, carregava angústias e já se vislumbravam algumas garras afiadas. Então, como hoje, os gatos transmitiam-me calma, aquela calma que a minha alma tormentosa nem sempre encontrava. Entregava-me horas infindas a tratar de gatos sofridos e traumatizados na União Zoófila de Lisboa, ou acorria a pedidos para acolher temporariamente gatos ou ninhadas em cuidados.

No entremeio, dediquei-me à Arqueologia. O mundo do Passado não era desconhecido para mim, abriu-se no entanto um novo universo perante os meus olhos. As plantas, as montanhas, a terra, os insetos, os cheiros por detrás dos prédios, das estradas, das luzes... Na casa dos vinte, vi-me deslumbrada e hipnotizada pela beleza e força inspiradora da natureza, à qual eu sempre pertenci, sem nunca ter sabido disso.

Os últimos anos passados na urbe, preenchidos com muito trabalho, em que a primeira aula se dava às 8.00 h na Escola e a última às 22.00 h na Universidade, enriqueceram-me profissionalmente. Do ponto de vista académico a bagagem que trouxe foi, sem dúvida, monumental, ainda assim, sempre senti um espaço vazio nas profundezas da minha alma.

Comprei uma segunda habitação no campo, onde descansava, qual guerreiro derreado do combate semanal. Aí, a alvorada era espontânea, sem a obrigatoriedade de uma ansiedade antecipada por que tem que ser, porque é preciso ser-se agressivo na cidade. Lentamente fui consciencializando que, quando a estrada se aproximava destas terras, se podia sentir o cheiro relaxante a feno. Podia finalmente sentir-me o animal que sou e sempre fui.

Hoje tenho a minha própria Família, que amo com toda a força das minhas entranhas. Morar aqui, neste sítio que é nosso, onde à nossa volta crescem árvores, flores e até ervas daninhas, onde se pode sentir no corpo as águas frias do rio em dias tórridos, é profundamente encantador. Nesta quinta, onde se planta a minha casinha de pedra, onde me sinto matrona deste lar tranquilo, feliz e afetuoso, tenho uma sensação de pertença nunca antes sentido. É aqui que sou feliz, é aqui que eu pertenço.

Para onde quer que eu vá, onde quer que eu acabe os meus dias, a minha natureza pode até oscilar, mas todo este verde que me envolve é, sem dúvida, a Natureza do meu coração...

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