domingo, 12 de maio de 2019

Derrubar Muralhas & Destruir Mitos


Devo confessar que estou a transbordar de felicidade e de esperança. Não é segredo para ninguém o desprezo que sinto por qualquer forma de julgamentos gratuitos, insensatos, cruéis e movidos pela ignorância aleada a uma estranha e perversa maldade. Já verti muita tinta sobre o flagelo de todo o tipo de descriminação que se exerce sobre os portadores de doença mental, por estas terras a que chamamos país.  

Pouco dada a misticismos, devo reconhecer que já passei por coincidências, no mínimo estranhas. A minha vida anda há mais de um ano a aguentar as consequências de eu ter visto os meus mais elementares direitos de dignidade humana violentados a céu aberto, porque carrego no corpo os genes da doença bipolar. Há um ano atrás, teria pensado que tal facto, no Portugal de 2019, não seria possível. Um ano volvido, porque estamos sempre a aprender, perdi a minha ingenuidade. 

Enquanto tudo isto decorre, leio a famosa obra de Hitler, A Minha Luta, e não deixo de sorrir com a ironia de ter o desprazer de observar belos filantropos, da atualidade, a fazer exatamente a mesma coisa. Com um pouco de sorte, nas aulas de História, comentam a monstruosidade da doutrina nazi, e ensinam Cidadania, aquela acerca da qual não entendem um chavo! 

Estou sempre a ser aconselhada pelo meu amado Marido no sentido de me conter nas palavras. Melhor do que ninguém, ele sabe que sou muito pouco dotada de inteligência emocional. Não tenho queda, nem jeito, nem capacidade, para dizer o que se quer ouvir. Para mim as coisas são o que são, não douro pílulas, não invento histórias e, dentro da legalidade, movo-me pelos meus direitos, pelos direitos da minha família, tendo sempre presente o respeito pela minha integridade e honestidade que sempre me foi incutida. Nesta vida, se há coisa que não trago são pinóquios/as feitos de carne e osso.

Neste país, onde abundam doutores e engenheiros que, desde a psicologia de bolso, à medicina em dez lições, são versados num pouco de tudo. Por todos os lados se ouve toda a sorte de opiniões bizarras que, mais do que parcas de conteúdo, se erguem em pés de barro. Acredito até que, quem as profere não sabe nem sonha que, tudo aquilo que se afirma tem que ter por detrás o conhecimento científico. O meu saudoso Pai, relativamente a isto, tinha uma expressão engraçada, da qual não me irei esquecer. Era engenheiro civil de profissão. Era comum, junto a obras na rua, estar um grupo de senhores reformados, observando as máquinas a trabalhar e tecendo as mais diversas teorias em relação aos trabalhos. A estes senhores, o meu Pai referia-se com ironia, tratarem-se dos engenheiros de obras feitas. Quando a conversa terminava, a obra estava feita!
No fundo, ao nosso redor há um pouco de tudo, médicos, engenheiros, professores, advogados…. São normalmente pessoas desta estirpe, as primeiras a apontar o dedo, a desviar-se das responsabilidades das suas próprias faltas e as mais criminosas no que toca à descriminação do próximo.

Preocupa-me este estado de coisas. Estou de momento a ler um livro que versa sobre o drama da segregação vivida nos EUA, enquanto membros do KKK matavam indiscriminadamente aqueles que, com base nas suas teorias biológicas, não mereciam tratamento humano. Verifico, no entanto, que, não sei por que artes mágicas, os preconceituosos estão infinitamente convictos de o não ser! Não admirando nenhum grupo segregador, confesso que tenho em melhor conta o KKK. A sua postura em relação à teoria das raças, pelo menos era admitida!

A discriminação só é crime se houver uma decisão tomada com base no tratamento diferenciado. Infelizmente, já fui vítima deste crime. Obviamente que será um crime praticado à vista de todos e consentido por todos. Hoje em dia, quando certas pessoas se atrevem a dizer-me que não me estão a discriminar, não tenho pejo em dizer que a conversa é bonita, mas que comigo não pega. Sim, tenho este grande defeito que só me faz arranjar problemas, pois muitas pessoas não gostam de ficar sem a máscara protetora do seu cinismo social. Para dizer que sim, mas que também, prefiro estar calada. 

A triste realidade é que tenho um problema de saúde ao qual não posso fugir. Mas é verdade, também, que tenho de me defender dos bombardeamentos constantes de que sou vítima. E como já fui cravada de tantas balas, nada como uma boa vacina para ganhar imunidade. Confesso que, quando o meu Filho sofreu na pele as consequências da ignorância popular, custou-me horrores ver, impotente, a mágoa a que o expuseram porque a sua mãe, eu, fui socialmente catalogada de criminosa, por crime de doença congénita. Com as balas que me atingem, posso eu bem, mas fazerem o meu Filho pagar por isso é cruel. Vacilei, a minha alma tremeu e o meu coração entristeceu-se, mas cobriu-se de um negro, tão negro, como aquele que só as mães sabem sentir quando querem proteger os filhos. Perante a crueldade alheia, só me restariam duas opções, cair e esmorecer ou erguer a cabeça e lutar contra este crime hediondo, digno de neonazis desinformados. 

Não é meu apanágio, nem fugir dos problemas, nem esconde-los ou, mesmo, aceitar resignada injustiças ou faltas de respeito por mim, e pelos meus. Há alguns anos atrás, para minha surpresa, comecei a perceber que ser bipolar era vergonhoso. Ou melhor, que era algo que se devia esconder muito bem escondidinho. Devo dizer que demorei algum tempo a perceber os motivos desta ideia instalada. Hoje, sei que assim é porque, infelizmente, no Portugal democrático do pós 25 de Abril, está tudo rigorosamente na mesma, quiçá, pior! O populacho é mau e, ao que parece, a parábola bíblica do bode expiatório, é reflexo da natureza dos "vencidos da vida"!

Já conheci pessoas de várias idades, de vários níveis culturais e das mais variadas profissões, que padecem da mesma doença que eu. Na verdade, sou requisitada por muitas amigas da minha Mãe para falar com este ou aquele familiar. O busílis da questão é sempre o mesmo - medo do julgamento social face à doença mental! Isto é uma pouca vergonha! Acho desumano toda e qualquer forma de coação que imprima no doente a impossibilidade deste fugir a uma vida miserável. Quem está errado não é quem carrega a doença, mas quem violenta o doente, fala sem saber e julga sem moralidade!

Há muitos anos que me movo no combate à discriminação. No passado dia 26 de Abril, a convite da Sic, prestei-me a dar uma entrevista acerca da forma como se vive a bipolaridade, quer a nível pessoal, quer a nível social. Desde que me forneçam um microfone, falarei até que voz me doa, e quando já não conseguir falar, continuarei a escrever. Uma coisa é garantida, esta luta contra o estigma e contra o crime abjeto e socialmente consentido, da discriminação face ao portador de doença mental, ainda agora começou.

Com a minha exposição pública, consegui reunir um grande grupo de pessoas que sofrem por ser doentes, que sofrem com a dificuldade em ajudar os seus entes, que sofrem miseravelmente esta dor inexplicável, sentida na costura entre o corpo e a alma, corrosiva, como só uma depressão major pode infligir. Estou satisfeita por ter conseguido encontrar um espaço de encontro entre nós, adaptado à realidade nacional, que diariamente vai tendo novos membros. No entanto, não deixo de estar muito desiludida com o que tenho visto.
Revoltam-me as histórias de sofrimento atroz por que muitas pessoas têm passado. Pessoas excluídas, maltratadas, incompreendidas, ostracizadas, desprezadas e, sinceramente, não encontro mais palavras para descrever isto. No entanto, perdoem-me a petulância, mas, se nós somos desprezíveis, não sei o que serão aqueles que nos atribuem um sem número de designações bizarras. 

Quem está a pensar mal? Hitler ou os judeus? Os negros ou o KKK? Onde fica a empatia, a humanidade, a compreensão pelo outro, a solidariedade? Enquanto não falarmos abertamente sobre a doença mental, sem tabus e sem vergonhas, ela não sairá do baú dos segredos. Certa vez, li um estudo acerca de A Minha Luta em que o historiador defendia a tese de que o livro devia ser legalizado em todos os países, como qualquer outro. Ele argumentava que, enquanto o livro fosse escondido do público, mantém o seu estatuto de "endeusado". E eu, embora também historiadora, atrevo-me a transpor esta teoria para o objeto em análise, considerando que esconder a doença mental contribui para perpetuar o seu estatuto demoníaco.

No fundo, no fundo, porque também tenho uma dose de gozona, quando surge em conversa, eu dizer que sou bipolar, aparece logo a exclamação cliché:

- Ah! Não tem nada aspeto disso!

- Pois, sabe, do aspeto não me queixo!

E por aqui me fico!

1 comentário:

  1. É muito triste sermos tidas como maluquinhas ou coisa que se assemelhe pois esse comentário do nao tem aspecto disso é tão discriminatório e dá tanta tristeza a sério, por isso me tento proteger desses comentários não dizendo praticamente a ninguem que sou bipolar, é um escudo protector que temos que usar .beijinhos Elsa

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