terça-feira, 20 de setembro de 2016

Quando um vai e o outro fica...


Hoje, assinala-se mais um ano sobre a partida do meu Irmão. Procuro vaguear pela minha memória tentando recordar-me do torpor em que estaria neste preciso momento, nesta mesma hora, neste mesmo dia. Sei apenas que o choque se apoderou de mim. Sei que ao longo de várias semanas vivi num limbo de dor inimaginável e indescritível. Jamais esquecerei o rancor que se apoderou de mim ao receber no seu telemóvel uma mensagem que anunciava o nascimento de uma criança, já ele jazia numa mesa de uma morgue qualquer. Como poderia alguém estar feliz num dia tão miserável?!
A operacionalidade que me caracterizou nos primeiros tempos, em que tive de resolver questões práticas e servir de amparo aos meus pais, quebrou-se ao final de algumas semanas. Caí num abismo profundo de dor. Soube que a vida jamais seria a mesma. Lançadas as suas cinzas ao mar, ao terminarem todos aqueles rituais de morte, recordo ter mergulhado numa solidão tão profunda e dorida que não consigo sequer descrever.
Deitada na minha cama, deixava-me sacudir pelo cansaço provocado pelo sofrimento até que o sono me levava a viajar pela ilusão de que nada estava a acontecer. Como desejava que a realidade fosse o sonho e o sonho a realidade!!
Não pude, no entanto, sofrer livremente as minhas dores. Na verdade, tinha a enorme responsabilidade de não deixar que os meus pais caíssem. Se era duro ficar sem o meu Irmão, como suportaria ficar sem os meus Pais? O mundo também não me soube deixar sofrer. Todos me diziam que a minha preocupação devia estar virada para os meus Pais: Tens de ser forte, os teus pais precisam de ti! Ouvi vezes sem conta. Na verdade, mais do que aquelas que precisaria de ouvir. Tinha vinte e dois anos, era pouco mais do que uma jovem adulta. Onde poderia eu arranjar humanamente coragem para amparar um pai e uma mãe que haviam acabado de enterrar o seu bem mais precioso - um Filho! Eu, que nem sequer sabia o que era o amor de um pai ou de uma mãe.
É duro perder um filho, bem sei, consigo imaginá-lo. Conheço demasiado bem essa dor porque convivi com ela durante muitos anos. É igualmente duro ver os nossos pais morrer em vida. No dia em que enterrei o Guncha, enterrei também parte do meu Pai, da minha Mãe e de mim. Perder um Irmão não é menos duro. Perde-se o primeiro e mais íntimo amigo de todos. Perde-se parte da nossa história. Passamos a ser tripulantes de um barco naufragado que, muito a custo retoma a sua rota.
É preciso reaprender a viver. A vida nunca mais torna a ser a mesma. Passa a haver o antes e o depois. A dor encarregou-se de me moldar.Com o tempo aprendi a ser mais feliz. Mais feliz porque não tenho o amanhã como garantido. Aproveito cada segundo na companhia de quem mais amo. Quando acabo de abraçar o meu Marido, não sei se o poderei voltar a fazê-lo. Cada beijo é como se fosse o último. Aprendi da mais dura forma que a vida se esvai num ápice.
Estou grata pela vida que tenho. Se não tivesse sido a sua precoce partida, nunca me veria tão grata pelos dias que se sucedem rotineiros e prazerosos. São no entanto prazerosos, porque, na sua simplicidade e singeleza me proporcionam a segurança de ser quem sou, de carregar todas as minhas alegrias, dores e sofrimentos. Se não fosse a sua precoce partida simplesmente não seria eu. Sou fruto daquilo que sofri, daquilo que vivi. Principalmente sou fruto duma espécie de irmandade, pois faço parte do grupo daqueles que desde que nascem têm um amigo à espera. Não seria quem sou se não tivesse partilhado parte da minha vida com um irmão.
Quando um vai e o outro fica, resta-nos, sem dúvida, um sentimento profundo de solidão. O vazio é aterrador. O abrupto do desaparecimento é traumático e terrível.
Não éramos gémeos, mas tinhas pouco mais de 12 meses de diferença. Tu foste o meu primeiro amigo. Nunca se apagarão da minha memória as brincadeiras que partilhámos, noitadas que fizemos e até brigas que tivemos. Não sei como seria a vida contigo, hoje. Sei, no entanto, vincada, profunda e sentidamente como fiquei quando um foi e o outro ficou...


Sem comentários:

Enviar um comentário